No retorno de uma longa viagem de fim de ano, soube que o Murico, o mais excêntrico das figuras pitorescas descritas na primeira crônica deste livro, morreu durante a minha ausência. O projeto de edição deste livro já estava em curso, revisão de texto já feita, mas resolvi escrever mais esta crônica, uma homenagem a uma figura marcante, que deixou muita saudade. E um bônus para você, leitor.
A notícia da morte do Murico me deixou consternado. Eu e minha família aprendemos a prezar aquele singelo ser humano, que optou por viver na rua. Sim, há muito tomei conhecimento de que a vida que ele levava era uma opção. O Moysés, este era o seu nome, tinha uma família pobre, porém razoavelmente estruturada, que lhe proporcionou rudimentos de educação. Mas, na adolescência, ele teria se envolvido com drogas e todas as situações daí decorrentes. Ele amargou alguns anos de prisão, onde teria sido vítima de violência de toda ordem, inclusive da parte de policiais. Teve a felicidade de não sucumbir aos maus tratos e de sair daquele “inferno”, porém com seqüelas que marcaram o resto de sua vida. Egresso da prisão, a convivência em família foi inviável. Qualquer lugar fixo, ele teria dito à mãe, era uma cadeia, e que ele preferia viver e morrer como os pássaros. Voando por todos os lugares e morrendo onde e quando Deus quisesse.
Aí eu entendi porque o Murico, nos seus momentos de maior euforia, saia cantando pelas ruas do bairro, integralmente, a música “Pavão Misterioso” do Ednardo:
Pavão misterioso
Pássaro formoso
Tudo é mistério
Nesse teu voar
Ai se eu corresse assim
Tantos céus assim
Muita história
Eu tinha prá contar...
Pavão misterioso
Nessa cauda
Aberta em leque
Me guarda moleque
De eterno brincar
Me poupa do vexame
De morrer tão moço
Muita coisa ainda
Quero olhar...
Pavão misterioso
Pássaro formoso
Tudo é mistério
Nesse seu voar
Ai se eu corresse assim
Tantos céus assim
Muita história
Eu tinha prá contar...
Pavão misterioso
Pássaro formoso
No escuro dessa noite
Me ajuda, cantar
Derrama essas faíscas
Despeja esse trovão
Desmancha isso tudo, oh!
Que não é certo não...
Pavão misterioso
Pássaro formoso
Um conde raivoso
Não tarda a chegar
Não temas minha donzela
Nossa sorte nessa guerra
Eles são muitos
Mas não podem voar...
A inteligência e a sensibilidade do Murico eram indiscutíveis. Diversas vezes o vi, lendo os fragmentos de jornais que ele encontrava pela rua e quase sempre fazia comentários com juízo de valor sobre a notícia, ainda que defasada.
Refeito do impacto da morte do Moysés, busquei saber em que circunstâncias ela se deu. Fim de tarde de dezembro em Belém. Chovia torrencialmente, o Murico, cheio da “canicilina”, como quase sempre, pediu ao dono de uma baiúca uma “beira”, para se proteger do temporal. Recostou-se num canto, colocou-se numa posição fetal e com os cabelos e a barba longos, projetados sobre o corpo esquálido, entrou em sono profundo.
As horas se passaram e chamou atenção do baiuqueiro o fato do Murico não reagir aos respingos da chuva que caiam sobre o corpo dele. Logo ele que não era chegado a água. Foi inútil chamar pelo Murico.
Eu imagino a chegada do Murico lá no céu. Com aquele sorriso de criança, cantando a música de sua livre adaptação, quando queria ganhar um bom prato:
Mamãe, mamãe, mamãe eu quero.
Mamãe eu quero
Mamãe eu quero brocar
Traga o bandeco
Traga o bandeco
Traga o bandeco pro Murico não chorar.
Toma Muriquinho do meu coração
Toma esse ranguinho e não chores mais não.
O paraíso deve estar mais festivo, com a chegada daquele anjo que nas suas provações em sua passagem pela terra, optou por viver como os pássaros. Que andou por onde a vida o levou e morreu onde e como Deus quis.
Com essa crônica dedicada ao Murico, eu homenageio também, todos os homens e mulheres de rua. Aqueles que, quando muito, merecem registro apenas na página policial dos jornais da grande imprensa.
Amor! Sua sensibilidade e generosidade sempre me encantaram. Murico pedia o seu "Nescau" e enquanto esperava cantava "A Montanha" do Rei Roberto Carlos, agradecido pela natureza, pelo sorriso, pelas estrelas... Deixa saudades e reflexão sobre a beleza da vida, seja como for.
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