Há dias vinha pesando em inserir neste blog um poema temático do Círio
de Nazaré, nesta época que antecede a festa maior dos paraenses, católicos ou
não. Afinal a cidade pára e queiramos ou não, tudo gira em torno do Círio de Nazaré
em Belém do Pará. Além do que, há muito o Círio ultrapassou a dimensão de manifestação
religiosa. Atualmente é uma festa de contágios, de gente, tanto que foi agora reconhecido como Patrimônio Cultural e Imaterial da Humanidade.
Mas eu queria algo diferente. Um poema que descrevesse o Círio com
simplicidade e de preferência em “paraensês”. Algo com que o leitor ou o ouvinte
visualizasse a procissão do Círio, ao ler o poema ou ao ouvir sua declamação. Acho
que o inconsciente coletivo e a lei da sincronicidade universal tramaram a
favor.
Foi na retomada dos saraus da Sociedade dos Poetas Vivos. Uma iniciativa
do poeta, escritor, pesquisador e arte-educador Antonio Juraci Siqueira, o
Boto, no início dos anos 90, uma metáfora para o sucesso de bilheteria estrelado
pelo recém-falecido Robin Wiliams “Sociedade dos Poetas Mortos”, em que
estudantes se reuniam numa caverna para declamar poesias de poetas mortos. À
época, Juraci propôs “Se no filme os estudantes reuniam-se numa caverna, por
que não nos reunirmos em praça pública para declamarmos poesias de poetas
vivos?”. A adesão foi maciça. Muitos saraus da Sociedade dos Poetas Vivos aconteceram.
Há anos os poetas vivos não se encontravam. Na sexta-feira, dia 3 de
outubro, foi realizado o primeiro sarau deles deste milênio. Foi no anfiteatro
da Praça da República, numa noite de lua cheia, com muita poesia regada a
vinho.
Paulo Guedes |
Pois bem, dentre os tantos poetas presentes no evento estava Paulo
Guedes. Chamou muito minha atenção um poema de autoria dele declamado por ele.
Era exatamente o que eu estava procurando. Conversamos bastante e demos uma “esticada”
pela noite. Saldo da noitada, a autorização de Guedes pra a inserção de seu
poema neste blog. É com esse poema que eu brindo o amigo leitor, desejando-lhe
Feliz Círio e muita harmonia em sua confraternização ciriana, sob as bênçãos de
Nossa Senhora de Nazaré:
ACORDA É CÍRIO
Domingo, o segundo de outubro,
o galo acorda a madrugada
acorda todo mundo e descubro
que até a corda já está acordada!
O galo acorda e o povo canta
o canto acorda o badalo
o badalo acorda o sino
o sino, a corda, a Santa,
a Santa acorda o peregrino,
o romeiro, a corda, o regalo.
A Sé acorda a fé
a fé acorda Belém
Belém acorda a pé
a família devota vem.
A corda acorda a mão
a fé é a mão na corda
a pé, na corda, é devoção,
a corda com mãos engorda.
A corda não é pra qualquer um
qualquer um pega corda
ninguém vai à corda em jejum
a corda não é para açorda.
A corda acorda todo mundo
acorda rico, acorda pobre,
acorda nobre, acorda anônimo,
arrasta sono, arrasta ânimo,
arrasta sobre, arrasta e encobre,
arrasta um milhão em um segundo!
A corda arrasta o romeiro
“o pagador de promessas”
arrasta quem se sente sozinho
arrasta até os ateus nas pressas
arrasta tudo o que tem no caminho
pororoca de gente, tsunami brasileiro.
gentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegente
acordacordacordacordacordacordacordacordacordacordacordacorda
gentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegente
égua do imã de gente
vem gente, vem muita gente
de ver gente, vem divergente
do continente, vem contingente
vem indiano, vem indigente
vem hindu, vem indulgente
vem punk com pingente, vem pungente
vem até o cético, sempre intransigente
égua do imã, Círio de gente
nunca vi (tanta) gente, vigente
das águas, vem o emergente
do convés, vem o convergente
que infringe, vem o infringente
que exige, vem o exigente
que interliga, vem o inteligente
que rege, vem o regente
que dirige, vem o dirigente
que reage, vem o reagente
se for polícia, vem o agente
se fede e pode deter, vem detergente
mesmo que não seja urgente
mesmo que seja adstringente,
rogo que seja abrangente,
porque nunca vi tanta gente,
isso, sim, é tangente,
Ó imagem imanente
égua do imã de gente
vem gente, vem muita gente!
A gente tem mãos
as mãos que tiram a corda do rolo
a corda que puxa o andor da Santa na
berlinda
a berlinda que conduz a Virgem com o
menino no colo
o menino Jesus despido com o globo
terrestre em suas mãos...
Ah, essas mãos!
une a mão na mão
gruda a mão n’outra mão
cola a mão na palma da mão
é um aperto de mão
tem mão na contra mão
tem muita mão na corda
é uma corda de mão
é um carro de mão
é corrente de mão
é correnteza de mão
é corrimão
é quilômetro de mão
um século de mão
uma procissão de mão
toda a fé na mão
toda corda na mão
a mão que sangra, irmão
imploro de antemão
a mão tem que ir, irmão
a carne viva na mão
por favor, puxem o freio de mão!
Égua, é muita mão!
gentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegente
mãonamão naoutramão apertodemão muitamão cordademão carrodemão
corda corda corda corda corda corda corda corda
corda corda corda corda
mãocordademão carrodemão correntedemão correntezademão
corrimão
gentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegente
a gente sente calor
a gente sente sede
a gente sente dor
a gente sente fome
a gente sente gente
atrás da gente, rente
ao lado e na frente
pisando a gente sente
chorando no asfalto quente
égua, é muita gente
égua, queremos água
água para beber
água para molhar
água para viver
água para pisar
água, a gente quer
água, muita água
água mineral
água bem gelada
água natural
água batizada
água de poço
água torneiral
água de coco
égua, cadê a água?
Santa, o povo mira em ti
haja brinquedo de miriti
brinquedo leve que encanta
cata-vento, girândola, tem aqui,
só não vi nenhum de anta
eu queria um bem-te-vi
cobra pequena num adianta
bacana é cobra grande, sucuri,
tem até barco de miriti
criança não cabe em si
égua, nunca vi tanto miriti!
Tem muitas imagens em cera:
na verdade, feitas em parafina,
cabeça ou perna é grossa,
já a vela do círio é fina.
A procissão agora existe
e pé no asfalto é gestação
e a bolha d’água no dedo insiste
e assim começa a peregrinação!
Barcas são veículos,
carros são andores,
guardas são vínculos,
anjos são pecadores,
políticos são pávulos,
Fogos? São estivadores!
Aí começa a chover papel
junto aos fogos de artifícios
parece uma festa santa no céu
que encanta os caboclos beócios
aí começa o delírio, abençoado escarcéu,
aí começa o Círio para os convertidos
ímpios!
A berlinda em cedro vermelho
estilo barroco, coberta de flores
no Sol, a Santa brilha mais que espelho
sob o manto bordado e cravejado de cores
Aos pés da Virgem Santa
a cabeça alada de um anjo
expressa o símbolo iconográfico
da incomensurável Glória Celestial
brilham raios num esplendor que acalanta
advindos do Altar Mor no seu divino
arranjo
e resplandece no presbitério o nicho
ideográfico
Ó Mãe com seu manto canônico sob a redoma
de cristal!
Ah, o seu alvo manto canônico
ornado com fios e enfeites de ouro
triângulo símbolo e sinal mnemônico
Ó manto santo, vestes um divino tesouro!
promessapromessapromessapromessapromessapromessapromessa
miritimiritimiritimiritimiritimiritimiritimiritimiritimiritimiritimiritimiritimiriti
gentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegente
mãonamão
naoutramão apertodemão muitamão
cordademão carrodemão
corda cordacordacordacorda SANTA
cordacordacordacordacorda
mão
cordademão carrodemão correntedemão
correntezademão corrimão
gentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegentegente
miritimiritimiritimiritimiritimiritimiritimiritimiritimiritimiritimiritimiritimiriti
promessapromessapromessapromessapromessapromessapromessa
Chegou à Praça Santuário!
Claro
que eu vou declamar “ACORDA É CÍRIO” para os amigos e familiares na
confraternização ciriana de minha casa.
Tomara que eu consiga me aproximar da interpretação do autor.
P.S:
O e-mail do Paulo Guedes é prcguedes@yahoo.com.br Ele
está no Facebook com o nome Paulo R. C. Guedes