quinta-feira, outubro 14

O SEGREDO DA NAZICA

Durante toda a viagem no regatão do compadre Didi, de vez em quando mestre Manduquinha subia no toldo do barco, a modo de molhar os perus, patos e galinhas caipiras que vinham na gaiola da embarcação. De manhã cedo e quando o sol baixava, ele subia prá dar milho pros bicos. Queria que eles chegassem cevados como estavam lá no Aduacá. Os amarrados de mari-mari e os paneiros com piracuí de acari e as caixas com tucumã ficavam em baixo de sua rede no convés do barco Sapucaia. Quando se espichava na rede, imaginava - Ah! Se não fossem os fiscais do Ibama... Tinha trazido uma tartaruga peiada e também umas dúzias de ovos de tracajá. Mas os cuirões tão “marcando cerrado” o embarque desses produtos. Num há ser nada, vou levando uma boa bóia, imaginava Manduquinha, soltando uma baforada da porronca. .
Tá certo, ía incomodar um pouco. Mas ele precisava fazer aquele tratamento médico na capital. E, parente é prá essas coisas, pensava ele. Além de tudo, Nazica não era apenas sobrinha, era também sua afilhada. E a Sinhá lhe falara que na casa da Nazica tinha até um quarto de agasalhar parente que os pávulos da capitar chamam de quarto de hóspede. Disque tem até privada dentro. Só quero ver.
Num há de ser nada, imaginava o caboclo. Além do que, ia matar uma saudade antiga. Desde que Nazica arribou lá das bandas do Aduacá, na antiga zona do contestado entre os estados do Pará e do Amazonas, nunca mais a vira. Se bem que sempre foi convidado pros eventos mais importantes da cunhantã, como a sua colação de grau em Economia e seu casamento. Mas as ocupações com o rebanho e as atividades de comércio nunca permitiram que ele comparecesse. Mas sempre despachava a velha Sinhá e uma das meninas. Quando veio a Belém, certa feita, ele foi passando direto pro Marajó, prá participar de uma exposição gado búfalo. Soube que a Nazica andava, então, pelas Orópias. Num havia de ser nada, um dia iria reencontrar a afilhada. E a oportunidade era agora. E não ia chegar de mãos abanando. Trazia o que de melhor podia oferecer.
O barco atracou de madrugada, num porto da Bernardo Sayão, prá ele sempre Estrada Nova. Olhou e não reconheceu ninguém à sua espera. Já começava a ficar cuíra, quando um homem se dirigiu a ele e perguntou com voz empostada se ele seria o Sr. Manuel Raimundo da Silva Rodrigues.
- Que diacho é isso? Pensou o caboclo. Um “sordado” esperando por mim? Mas, não cortou conversa: - É verdade, doutor, esse nome está na minha identidade, mas só me chamam de Manduquinha, desde que era curumim lá pras bandas do Aminaru.
- O senhor é o tio da Doutora Nazaré Campbell?
- “Cam..” o que? Olhe, eu sou tio e padrinho da Nazica, que nasceu lá no Aduacá. Sinhá falou com ela e ela disse que vinha me apanhá, aqui adonde encostam os barcos que vem daquelas bandas.
- Desculpe, senhor, a Doutora Nazaré esta hora está dormindo. Permita-me apresentar-me. Eu sou Charleston, o motorista da família. Muito prazer. Estou aqui, para ajudá-lo.
Ah! bom, pensou Manduquinha, tô bem arrumado. Enfim, estendeu a mão e - Sastifação, seu..seu... – Pode me chamar de Charles, fica mais fácil, retrucou o motorista, caprichando no chiado da segunda sílaba. – Este cara é viado, pensou Manduquinha. Isso não é nome de macho.
A operação demorou um pouco. Mas finalmente, a mala, os paneiros, os amarrados e as caixas foram colocadas na carroceria da F-2000, cabine dupla.
No caminho, Manduquinha ia imaginando – Égua, parente, a Nazica deve de estar muito bem amparada. Até motorista fardado ela tem. Vá pílula. Tomara que ela não esteja muito pávula, porque abestalhada ela nunca foi.
Manduquinha levou um susto com a casa de Nazica. Uma bela mansão lá pros lados do aeroporto. O caboclo foi instalado num quarto confortável. Foi verter água e ficou espantado com a belezura da privada. Num vazo desse, agente nem tem coragem de obrar, disse pros seus botões. Mas o relaxamento da tensão da chegada na Estrada Nova proporcionou-lhe serviço completo. Ficou mais impressionado, com o cuééé´mmm, que a água fez, quando apertou o botão prá descagar o vaso. O que ele gostou foi da localização do quarto. Ficava longe da sala e dos demais quartos. Pelo menos isso, pensou ele, aqui não incomodo os outros viventes desta casa.
Lá pras onze e meia da manhã, Esmelda, a governanta, que Manduquinha tinha que fazer um esforço enorme prá não chamar de Esmerda, anunciou-lhe que a Doutora Nazaré esperava por ele na sala de estar.
- Olá, tio Manoeeeln! Quanto tieeempo, heeeeein?
- Para com isso Nazica, cadê a benção do padrinho? E pode continuar me chamando de tio Manduquinha ou de dindinho, como tu me chamava no tempo de cunhanmuçu-pisaçu, lá no Aduacá. Respondeu Manduca, espantado com a nasalação e os trejeitos na boca da afilhada.
- Que horrrror, tio. Se um dia eu fui Naziiiiiica, já esqueci. Agora sou Naaazarééé ou Carioooca, como chamam minhas colegas de academia. Saaabe, tio Manoeeel, quando a geeente viaja para o Suuuul e outros lugares do mundo, agennnte vai adquirindo outros modos e sotaaaques. E como estão seus e os demais lá da sua terra?
- Ah bom, Nazaré, tou na tua casa. – Manduquinha mal disfarçou certa decepção com a sobrinha e falou sobre os mimos que trouxera para a família. Nazica, aliás, Doutora Nazaré, sem perder o carioquês artificial, agradeceu e chamou a governanta para, como o apoio de Charleston guardar os presentes do tio Manoel. E, muito solícita, disse-lhe que o motorista ficaria à disposição dele, com a ressalva apenas do horário de sua academia e das suas saídas para o Shopping. As crianças estavam em férias nos Estados Unidos e o marido trabalhava o dia inteiro, deslocando-se em sua BMW, saindo de manhã e voltando somente à noite. Manduquinha, aliás tio Manoel poderia fazer as refeições nos horários que lhe fossem mais convenientes. A conversa terminou com um coooom licieeença.
Manduquinha não gostou nada do que viu e ouviu. Especialmente com o fato da afilhada referir-se à terra onde ela nasceu como se não fosse dela. Na sabedoria do homem simples, Manduquinha podia não conhecer a palavra, mas ele identificava o provincianismo dos deslumbrados com as vivências em outros centros que passam a negar a sua própria terra. Caboclo “passado na casca do alho”, Manduquinha pensou com os seus botões: a vida é essa. A cuirona tá abuiada. Só espero que o tar do marido dela num seja um contrabandista. Quem viu essa perreché, criada a devoluto, correndo pela varanda da casa do finado Tinico e se atirando da cabeça da ponte. Adepois, diziam a más línguas, que ela bateu barro com muito daqueles curumins criados que viviam mergulhando o bodeco. É! Saiu que nem a velha Pupu, tia dela, que na juventude, ah! Meu Deus, fez a felicidade de muita gente. Manduca não pode evitar um sorriso nostálgico, lembrando das festas de antigamente, lá pros lados do Xixiá, Aminaru, Papucu e Curiá. Aquilo que era vida! Muito forró, muita esfregação de virilha.
Ah! bom. Mas estou aqui é prá cuidar desse anuviamento que deu de aparecer nos meus zolho. Vou procurar incomodar o mínimo e vortar lá pras minhas bandas. Agora, uma coisa me deixou cuíra. O que fizeram na venta da Nazica? Num tá normar. Quando ela fala ou sorri, o beiço de cima nem se mexe, fica duro. E as bochechas? Parece dois tomates amarelos.
Nas poucas vezes que tomou café da manhã com a sobrinha e o marido dela, o divertimento interior do caboclo era a fala da Nazica, que ele comparava com uma taquara rachada e as lucubrações que ele fazia quanto ao que fizeram pro rosto de Nazaré ficar daquele jeito. Tanto dinheiro, pensava ele, e a cara já desse jeito. Eu dava uma boiada prá ver essa cara sem essas pinturas todas e esse perfume que enjoa a gente.
Manduquinha gostou muito do marido da afilhada. Sujeito simpático, falante, torcedor do Paissandu, seu time do coração. Era um dotor cerurgião, que trabalhava de sol a sol e gostava de assuntar sobre as coisas do interior. Prometeu até visitar o Aduacá. Se ele cumprir a promessa,vou matar uma rês e fazer uma churrascada prá dotô nenhum botar defeito, mato um porco prá fazer mixira e ensino até ele a pescar.
O caboclo não gostava era do jeito com que um certo doutor Ricardo, amigo da família, olhava prá Nazica. Manduca comparava com o jeito que o pescador olha pro lago onde ele pesca. E ela ficava serena como um pião rodando dentro duma roda riscada no chão. Enfim, pensava o caboclo, aquilo era uma saliência que o marido tinha que cuidar.
Certa manhã, Manduquinha, que estava na sala de estar, atendeu ao telefone. A carioooonca está? Ele já ia dizer que não conhecia, quando lembrou o apelido da Nazica. Caboco ladino, percebeu a ironia da mulher do outro lado da linha, ao se referir à dona da casa como carioca. Passou o telefone e permaneceu no ambiente, concentrado na página de esportes do jornal. Lá pelas tantas, foi impossível manter a concentração. Na conversa com outra dondoca, a sobrinha deu a pista do seu segredo pro tio Manduquinha, que manteve a discrição, enfiando mais ainda, a cara no jornal, soletrando uma reportagem sobre a vitória do Papão contra o clube do Remo. A estridência da música “Hoje a jiripoca vai piar” com que o cantor Leonardo embevecia Carioca, recostada sobre almofadas no sofá da sala, prejudicava a audição de Manduquinha, mas ele percebeu que a conversa girava sobre tratamentos de beleza e cirurgia plástica. Junto com um dos agudos do cantor, manduca ouviu bem a palavra bostox.
Axi porcaria! Exclamou Manduquinha, prá ele mesmo. Então é merda que essa cuirona esfrega na cara dela prá ficar assim. Lisa, dura, esquisita, num treme nem quando leva susto. Agora, só tenho que descobrir que tipo de bosta faz esse efeito. Será titi de galinha? Ou é estrume de novilha coberta? Ah! É por isso que ela só anda perfumada. É um disfarce.
Octavio Pessoa - jornalista, advogado e auditor federal de controle externo.

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