Depois de algum tempo afastado, aqui estou de volta. Após meu retorno dos Estados Unidos, sobrecarga de trabalho e outras atividades me absorveram totalmente. O que importa é que “aqui me tens de regresso”.
A crônica “Ninguém entregou ninguém” completa a série que será reunida no meu primeiro livro de crônicas intitulado “Causos Amazônicos”, já em fase de produção e com lançamento previsto para abril de 2012. O argumento me foi enviado há algum tempo, pela minha amiga e conterrânea, Ray Almeida, que reside atualmente em Manaus/AM, a quem eu dedico a crônica.
Na sequência, me dedicarei ao tema da ordem do dia, aqui no estado Pará: o plebiscito para decidir se devem ser criados os Estados do Carajás e do Tapajós, em partes significativas do atual território paraense.
Primeiro, vou falar sobre o que é um plebiscito, comentar os dispositivos constitucionais e legais que o fundamentam e as decisões normativas do Tribunal Superior Eleitoral e Tribunal Regional Eleitoral. Em seguida, opinarei, esclarecendo o público quanto as razões por que não se deve esquartejar este Estado, na série “PORQUE NÃO DIVIDIR O PARÁ”.
Agora, a crônica:
Ninguém entregou ninguém
Esta foi de lascar. Terminou com a suspensão de toda uma turma do Colégio Nossa Senhora do Carmo, lá de Parintins. Com sua irreverência, essa turma subverteu a ordem que imperava naquele Colégio, administrado pelas Irmãs de Caridade, na então Prelazia de Parintins.
Havia todo um ritual, naquela época, que era diariamente observado. Às 6:45, tocava o primeiro sino. O segundo, dez minutos depois, momento de todos os alunos se organizarem em filas, preparando-se para se dirigirem às salas de aula, o que acontecia quando o sino tocava pela terceira vez, impreterivelmente às 7:15. Nos feriados, como o 7 de setembro, antes da subida, todos tinham que cantar o Hino Nacional. Nos dias santos, missa em ação de graças, com a obrigatória confissão de todos, para terem direito à comunhão.
Entre as freiras, havia uma que carregava o nome da padroeira do Colégio, mas pelo contraste da cor de sua pele com a alvura do hábito que envergava, alguns alunos se referiam a ela como a “Roxinha”. Atitude condenável, hoje tipificada como crime, por encerrar uma atitude discriminatória, mas que, à época, “passava batido”, ante, acredito, a inconsciência de que o ato praticado encerrava preconceito.
Aquela freira era um exemplo de devoção a Deus, vinte e quatro horas por dia. Sisuda, nunca a vi sorrir para qualquer aluno ou aluna. Talvez ela esperasse pela “prisão do Zorro pelo Sargento Garcia”, para se permitir um sorriso. Sua rigidez se projetava nas exigências do bom comportamento dos alunos, de boas notas e devoção à fé cristã. De braços sempre cruzados quando falava, impunha voz firme, olhar luminoso, sob a brancura do hábito. Esta sua postura era respeitada por alunos e alunas. Ou quase todos. Foi o caso daquela turma que sofreu suspensão coletiva e que tinha aquela irmã como supervisora.
Quando o sino tocava pela primeira vez, ela descia as escadarias para aguardar pelos alunos, no pátio do Colégio. A essa altura, já havia rezado o primeiro terço do rosário que rezava todos os dias. Vinha ainda, com a cara meio amassada, mas nunca faltava. Passava, então, em revista, um por um dos alunos e com seus olhos de aracuã, verificava se todos estavam “dentro dos conformes”.
Quando o sino tocava pela primeira vez, ela descia as escadarias para aguardar pelos alunos, no pátio do Colégio. A essa altura, já havia rezado o primeiro terço do rosário que rezava todos os dias. Vinha ainda, com a cara meio amassada, mas nunca faltava. Passava, então, em revista, um por um dos alunos e com seus olhos de aracuã, verificava se todos estavam “dentro dos conformes”.
Começava pelas meninas. No item uniforme, as meias e os sapatos, estilo colegial, estavam limpos? A saia estava abaixo do joelho e pregueada? As blusas estavam engomadas? E haja goma de mandioca, que brilhava depois de passada a ferro! Gravata amarrotada ou aparência de desleixo, para alunos e alunas, repercutiam na nota mensal de “Comportamento”. Barba por fazer, nem pensar.
Agora, havia dois itens da indumentária feminina, hoje duas peças de museu, que incomodava tremendamente as meninas. Especialmente as mais “salientes”, que se queixavam para nós, rapazes. Era o corpete, meia camiseta que tinham que usar por cima do sutiã e as célebres anáguas, peças que eram obrigadas a usar entre a saia e a calcinha, que naquele tempo não era nenhum fio dental dos dias atuais.
E é aí que o melhor da história começa. Justamente nessa turma, havia umas meninas mais chegadas a uma saliência, cunhantains rosilhas, paresque criadas a devoluto, que chegaram lá das bandas do Ararauá. Eram um desafio para o cumprimento da regra imposta pelo Colégio e fiscalizada pela irmã Maria do Carmo: “Não pode namorar de farda”. Elas eram um colírio pros nossos olhos, prá dizer o mínimo.
Nossas musas e depois outras meninas, porque essas coisas só querem começo, inventaram uma “estratégia” prá não usarem as malditas anáguas. Elas combinavam umas com as outras, um “rodízio” daquela peça que as meninas de hoje não sabem nem o que é. As que iam com a maldita peça num determinado dia, subiam as escadarias e lá em cima, com a rapidez de um azougue, tiravam as malfadadas e atiravam-nas para as outras que, esperavam em baixo. Nessa hora era um agito só! Havia pouco tempo para subirem as escadas e depois jogarem as anáguas, pois sempre havia outras freiras por ali vigiando a turma. Nós, rapazes, dávamos todo apoio para a bem vinda ação libertadora.
Desconfiada da algazarra, a irmã Maria do Carmo passou a dar “incertas”, em cima das meninas mais visadas. Graças a Deus elas sempre venceram.Mas um dia, não mais que um dia, a Lei de Murphy (se algo de errado pode acontecer, prepare-se porque vai acontecer) aconteceu. Justamente uma das próceres daquele movimento de libertação, ao atirar a peça não tão íntima foi vítima do vento geral do mês de setembro. Uma forte lufada daquele vento, ideal prá gente empinar papagaio, fez mudar a trajetória da maldita anágua, que foi cair na sacristia da capela do colégio.
A beata Fuluca, já com a saúde abalada depois do susto que levou no velório da velha Mariquinha, mãe do pescador Mundinho Mandií, e já com um avançado processo de catarata, acabara de rezar seu décimo terço daquela manhã, na capela do colégio. Ao sair, ela pisou na peça. Levantou-a, apalpou-a e percebendo as rendas que a enfeitavam, julgou ser o véu de alguma Filha de Maria, que caíra na capela. Apressou-se em entregar para a madre superiora que acabara de “adentrar o recinto”, como diria o Murico, aquele homem de rua que se autointitula "lindo e educadíssimo".Foi aí que o “bicho pegou”.
A superiora, a quem os aplicadores de apelidos chamavam de “Maracujá de Gaveta”, convocou urgente e extraordinária reunião de todas as freiras e, logo, logo, chegaram a uma conclusão: a proprietária da peça era da turma supervisionada pela irmã Maria do Carmo, que já estava “na marca do pênalti” (a turma). Restava identificar a legítima proprietária, ainda que houvesse fortes suspeitas sobre aquela que por sua ousadia, podia ser considerada um projeto de Betty Friedam cabocla.
O passo seguinte foi a inquisição em sala de aula. De quem é esta anáguaa? Perguntava a madre superiora, com os lábios mais engelhados do que nunca, enquanto a irmã Maria do Carmo, roxa de raiva, levantava a peça que tremulava ao vento, na frente da turma. Todo mundo em silêncio. A ópera bufa se repetia e os alunos faziam olhar de paisagem amazônica. O tom de irritação foi aumentando. Já passava de meio dia, muita gente com fome, mas também “rouco de tanto ouvir”. Foi aí que veio o veredito: como a legítima proprietária não tem a dignidade de assumir seu pecaminoso gesto e todos são solidários com essa abominável atitude, toda a turma é responsável. Pois que todos paguem. Três dias de suspensão para toda turma.
Ninguém entregou ninguém.
Como é bom lembrar das brincadeiras e insubordinações escolares praticadas sem a violência que hoje assola nossas escolas. Aplausos pelo retorno!
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