A socióloga, doutora,
professora e pesquisadora Marília Emmi mais uma vez é reconhecida na seara da
ficção que abraçou após sua aposentadoria da UFPA.
Ainda
na Academia, Marília se tornou Mestre com sua tese que deu origem ao livro hoje esgotado sobre a “Oligarquia do
Tocantins e o domínio dos castanhais” e doutorou-se com a tese que originou a obra “Italianos na Amazônia:
pioneirismo econômico e identidade”. Ela escreveu depois, um livro em que
ampliou o espectro da imigração na Amazônia, “Um Século de Imigrações
Internacionais na Amazônia Brasileira”.
As origens italianas tanto de Marília quanto do marido, Giovanni Emmi, falaram mais alto e hoje ela se dedica à ficção em textos com a temática da imigração italiana na Amazônia. Seu primeiro conto, “Letizia”, foi premiado no 1º Concurso Literário Brasil-Itália publicado na Antologia Vozes Ítalo-brasileiras I / Voci Italobrasiliane I (2016).
As origens italianas tanto de Marília quanto do marido, Giovanni Emmi, falaram mais alto e hoje ela se dedica à ficção em textos com a temática da imigração italiana na Amazônia. Seu primeiro conto, “Letizia”, foi premiado no 1º Concurso Literário Brasil-Itália publicado na Antologia Vozes Ítalo-brasileiras I / Voci Italobrasiliane I (2016).
Selecionado,
um novo conto de Marília faz parte agora da coletânea bilíngue Faz de Conto III
/ Make Believe III, organizado por Jannini Rosa e apresentado por Betty
Silberstein, escritora, revisora e tradutora e é editada pela Helvetia, de Cabo
Frio/RJ.
São
35 contos de diversos autores editados num livro que não tem capa e contracapa.
Em qualquer sentido que o leitor apanhe o livro, a leitura é possível. De um
lado em Português e de outro em Inglês. Essa concepção gráfica lembra a
obra do consagrado autor paraense Daniel da Rocha Leite em parceria com o
também paraense Paulo Vieira, “Peso-Ver-O”, que não é bilíngue, mas aborda sob
dois enfoques a temática da feira do Ver-O-Peso de Belém.
Compartilho com o prezado leitor, o texto em Português do conto de Marília Os três amigos / The Three
Friends, sugerindo a leitura da coletânea completa que pode ser solicitada pelo
site www.helvetia-edicoes.com.br
Os três
amigos
Como se
não bastasse o som da vitrola no último volume, o coro das vozes dos três
amigos, ao entoar uma velha canção do folclore italiano, rasgava o silêncio da
noite naquela cidadezinha do interior da Amazônia. Quando não era a vitrola, o
som vinha do acordeon de Vittorio sempre acompanhado pelos amigos que
aumentavam a voz no refrão:
Merica, Merica, Merica / Cosa saràlo
‘sta Merica? / Merica, Merica, Merica / Un bel mazzolino di fior
A cena se
repetia todas as vezes que Gennaro, Vittorio e Giuseppe se encontravam.
_ A
italianada já começou a cantoria, vou me recolher! Reclamava dona Maricota,
vizinha de Giuseppe.
_Vamos
para casa da vovó! Os filhos de Giuseppe já sabiam que era hora de sair para
dar aos amigos a liberdade de mergulharem numa Itália distante, que só existia
em suas recordações. Eram tantas evocações: pessoas, lugares, acontecimentos
que só no universo deles fazia sentido.
O calabrês
Gennaro era da província de Cosenza. Após breve passagem pelo Rio de Janeiro,
morou por algum tempo em Belém, de onde seguiu ao encontro de parentes que
haviam se radicado em Óbidos, próspera cidade do baixo Amazonas. Solteiro,
deixou Maria, sua noiva na Itália, mas em Óbidos casou-se com Manuela, filha de
um comerciante espanhol, seu patrão. Gennaro, que era ferreiro de profissão,
depois de muita luta conseguiu montar um pequeno comércio de gêneros
alimentícios, ao lado de sua oficina. O lucano Vittorio, veio da província de
Potenza e fixou residência em Belém. Dois anos após a chegada, mandou buscar a
mulher e os filhos. Foi jornaleiro e engraxate mas conseguiu se firmar´ como
sapateiro. Trabalhou durante muitos anos na sapataria Bella Itália, no centro
de Belém. Prosperou, conseguindo tornar-se sócio desse estabelecimento. O
siciliano Giuseppe desde muito jovem trabalhou na agricultura. Convocado,
esteve nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Desse período, além da
memória dos combates, da fome e das agruras da guerra, alucinações
fantasmagóricas povoavam seu imaginário. Enfrentou muitas dificuldades para se
fixar em Belém. Aceitava o trabalho que aparecia. Foi leiteiro, jornaleiro,
engraxate e sapateiro. Resolveu tentar a sorte na cidade de João Coelho,
situada às margens da estrada de ferro de Bragança. Nessa cidade fixou
residência e conseguiu montar um pequeno restaurante onde servia a verdadeira
massa italiana que tinha prazer em preparar.
O
compromisso era imprescindível: todo final de mês Vittorio e Genaro cumpriam o
mesmo ritual, tomar o trem em Belém para o encontro na casa de Giuseppe.
Haveria algo no passado que unia esses três imigrantes com diferentes
trajetórias e histórias de vida? O fato de terem vindo de regiões empobrecidas
do sul da Itália e em circunstâncias adversas, além do sonho de juntar recursos
para o retorno à terra natal talvez explicasse tamanha cumplicidade, ou haveria
algo mais?
As
crianças gritavam alvoroçadas: Lá vem o trem! Lá vem o trem! O barulho do trem
trazia um pouco de vida àquelas paragens. Os vendedores ficavam à beira da
estrada com tabuleiros na cabeça anunciando seus produtos:
- Olha a
broa, olha o pastel! Vai uma pupunha cozida?
Ofereciam
também frutas da região. Um cheiro gostoso se espalhava no ar: cupuaçu, bacuri,
araçá, jambo. Tudo era convertido em alguns trocados.
O encontro
dos amigos era um acontecimento singular! Giuseppe vestia sua melhor roupa,
sapatos engraxados, cujo brilho a grossa camada de poeira escondia. O
inseparável boné xadrez sobre seus ralos cabelos.
Não
importava se o tempo estava chuvoso ou ensolarado. A cena sempre se repetia.
Vittorio e Gennaro desciam do trem bastante cansados, cabelos em desalinho,
roupas acinzentadas pela fumaça e por vezes queimadas pelas brasas que se
desprendiam do trem, mas nem se importavam com os percalços da viagem. Sempre
com um embrulho debaixo do braço, Gennaro trazia guloseimas para os filhos do
amigo. As crianças ficavam à espreita e logo que recebiam os doces sumiam pela
vizinhança. Vittorio trazia vinho, jornais e revistas que ganhava de patrícios
assíduos em sua sapataria.
O encontro
começava tão logo a locomotiva sumisse na estrada e entrava pela noite.
Geralmente durava dois ou três dias. Só terminava com a partida do trem que
levava de volta os visitantes.
Nem parece
que já haviam se passado mais de trinta anos quando a bordo do navio Europa os
três desembarcaram no Rio de Janeiro. A decisão de buscar o Brasil como destino
do percurso migratório estava nos planos do calabrês e do lucano, ambos tinham
parentes e promessas de trabalho. Diferente era a situação do siciliano.
Insatisfeito com seu ofício de ajudante de cozinha no navio, sempre que
aportava, tinha desejo de ficar. Considerava o sonho impossível, não fosse a
motivação e a ousadia dos novos amigos que fizera, sobretudo por conseguir
burlar a vigilância e partilhar alimentos que minorassem a fome e o desconforto
a que eram submetidos como passageiros de terceira classe. Gennaro e Vittorio
juraram que iriam conseguir realizar o sonho do novo amigo. Sim, ele também
tinha o direito de “fazer a América”!
O plano de
fuga foi posto em prática na ocasião do desembarque no Rio. Giuseppe ofereceu
ajuda para carregar as malas e assim que se viu em terra firme desapareceu na
multidão. O que aconteceu depois? As histórias só foram conhecidas quando na
década de 1950, por obra do acaso, houve o reencontro dos três numa estação da
ferrovia Belém-Bragança.
_ Senhor,
que horas parte o próximo trem para Bragança? Moro em Óbidos, mas preciso
entregar uma encomenda...
A frase é
interrompida por gritos de direções opostas:
_ Gennaro!Gennaro!
_
Vittorio! Giuseppe!
Quanto
tempo choraram abraçados! Queriam saber dos diversos caminhos percorridos,
compartilhar experiências, conhecer a história de cada um. Estavam felizes no
Brasil, mas a nostalgia da terra-mãe seria o elo da corrente que iria
acompanhá-los nos encontros mensais, pelo resto de suas vidas.
Marilia
Ferreira Emmi
Belém-Pará
14/01/18