O
roteiro anunciado do incêndio da boate Kiss, de Santa Maria/RS e do tratamento
de suas consequências segue o curso ordinário da apuração de todo episódio
catastrófico, em nosso país.
No primeiro momento, as trágicas
imagens, o espanto, a tristeza e a indignação generalizada. Depois, a revelação
das causas da tragédia- a ideologia do
lucro, com empresários que não cumprem as
normas de segurança e tratam seus clientes como gado humano. É escancarada a
falta de condições das instituições fiscalizadoras (entenda-se, o investimento
governamental reduzido nessas entidades) e o jogo de empurra-empurra da
responsabilidade, entre os órgãos competentes.
As
fiscalizações, que deveriam ser sistemáticas e permanentes, são feitas no
“calor da hora” e sob pressão da opinião pública. De forma pontual, portanto. Os
casos de corrupção, submersos pela própria natureza, vem à baila. Veja-se o caso
do oficial do corpo de bombeiros de Belém que vendia laudos falsificados de
“Habite-se”, colocando em risco a vida de seres humanos.
As
autoridades prometem a instauração de “rigoroso inquérito, com punição exemplar
dos responsáveis”. Lembram as palavras do então governador do Pará, diante das
câmeras de televisão, há mais de 20 anos, por ocasião do desabamento do
edifício Raimundo Farias? Pois é. Punido foi quem morreu. E há dois anos, outro prédio desabou em
Belém. E os donos do Bateau Mouche, o
navio que levou dezenas de pessoas pro fundo da baía de Gaunabara, num reveillon, no início da década de noventa? Todos
muito bem, obrigado.
Pela
“regra do jogo”, o roteiro para nesse ponto, o das promessas. A burocracia emperrada
das instituições e a processualística judiciária brasileira, rica em recursos e
mais recursos, se encarregam de jogar para as “calendas gregas”, uma decisão que, nos países que respeitam a cidadania, ocorrem no curto prazo.
E nós, como gado humano,
silenciamos, esquecemos. Afinal, somos o “país do futebol” e do carnaval, que
por sinal, está às portas. Esses necessários momentos de lazer para o ser
humano, são manipulados como panem et
circenses, para alimentar
o status quo, a situação vigente.
Afinal, é cômodo e gasta menos neurônios, discutir-se se o juiz roubou, se o
atacante estava impedido, se a bola entrou ou não entrou em baixo da trave, se
a Escola campeã realmente foi a melhor, e coisas do gênero. Os manipuladores
sabem disso e, com esses instrumentos, alimentam o “esquecimento” das massas. E
nós aceitamos passivamente o “jogo”. Até
quando vamos permitir que o roteiro pare no estágio das promessas? Que a
tristeza e a indignação vazias de ação sejam dominantes, diante das tragédias
provocadas pelo homem?
A tragédia da boate Kiss ceifou a
vida de mais de duas centenas de jovens, universitários em sua grande maioria.
Futuros profissionais de que o país tanto precisa. E condenou à morte muitos dos
que não morreram no incêndio, mas tiveram sua saúde comprometida para o resto
da vida. Ou sobrevida?
A atitude cidadã de homens e
mulheres conscientes é a de estarmos atentos ao desempenho das instituições
públicas, não só na apuração de tragédias como essa, mas sempre. Exercer o
direito de denúncia, essa palavra que assumiu uma conotação pejorativa na
cultura do medo, mas que é sim, um direito do cidadão, inscrito inclusive, na
Constituição. Todos devemos ser fiscais, inclusive das instituições pagas pelo
cidadão, enquanto contribuinte, para serem fiscalizadoras. “Botar a boca no trombone” é necessário. Inclusive pelas redes sociais, que tem sido e
continuarão sendo os instrumentos de mudança, em escala mundial, na realidade
atual e na futura. Sendo válido inclusive o boicote dos empreendimentos que, em
nome do lucro, nos tratam como gado humano.
Só sendo cidadãos ativos, saindo do
comodismo, podemos sonhar com a realização da última etapa do roteiro de
apuração das tragédias: a punição dos responsáveis. E assim, participar da construção de um mundo melhor e mais justo.
Octavio Pessoa – jornalista e
advogado.
Palavras certeiras contra atitudes governamentais tortuosas. Boa, Octavio. Seu post é de prima qualidade.
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