Há cada dia somos surpreendidos por fatos trágicos e inexplicáveis nesta verdadeira era das trevas que vivem nosso país e o mundo. Nada mais parece nos surpreender. Mas há fatos que nos abalam ante a sua estupidez e desumanidade. Eu coloco nesse rol o assassinato do menino Henry que a mídia divulgou à exaustão desde há duas semanas.
De
outra parte, tive a grata satisfação de ler na mídia impressa e no grupo de whatsapp
da Academia Paraense de Jornalismo, o profundo, belo e emocionante texto do confrade de APJ
Ernane Malato, que é jurista, escritor e acima de tudo um humanista. Compartilho
com meu leitores a:
"Em tempo de caos, um convite a contemplar o silêncio" (Povíncia Marista Brasil Centro-Sul) |
CANÇÃO PARA HENRY Ernane Malato
Que ousadia foi essa, a de cessar a esperança na sua vida e a sua vida na esperança desta vida? Que autorização foi essa em cruzarem seu caminho e apagarem o sol que começava a nascer? Que atrevimento foi esse o de riscar de sua existência tantas coisas naturais e permitir a invasão de outras tão descomunais? Com qual liberdade alteraram seu futuro, violaram seu presente e soterraram teu passado?
Por que cruzaram seu caminho, sua estrada, sua rota, os seus sonhos e a sua felicidade que ainda se formavam? Por que tiraram da sua vida várias vidas, várias idas, tantas voltas que haveriam e oportunidades que sobrevoavam? A título de quê?
Que monstruosidade cruzou sua felicidade que ninguém havia sido autorizado a violar? Qual a fera que ultrapassou o seu sagrado umbral, rompendo seu egrégio templo que o Criador elaborou, preservado por milênios pela esfinge guardiã da existência embrionária? Quem decepou as asas dessa ave que se preparava para voar? Que agouro invadiu seus campos férteis, contaminando o pólen que alimentava o verde dos teus céus floridos e o azul de tuas probabilidades infinitas?
Sua pureza, seu sorriso, seus brinquedos, seus desejos, sua fome, seus murmúrios, suas queixas, suas dores, seus horrores e seus gritos, ultrapassam a sanha da brutalidade que avançava sobre sua luz que ofuscou a escuridão de quem chegava.
Serafins, querubins e arcanjos de outra faixa universal, estremeçam! Miguel, Gabriel, Rafael, Salatiel – intermediários entre humanidade e divindade – desembainhem vossas espadas! Cumpram vossos ofícios! Enfrentem o Cérbero! Decepem a medusa! Escancarem os portões sagrados desse Parthenon! Soprem vossas trombetas douradas para a queda das muralhas da absurdez! Abriguem a inocente ave que aterrissa em vossas acrópoles! Mantenham sua chama acessa para que ilumine essa história!
A ferocidade não detém o poema, nem a homenagem que o mesmo realiza no momento em que tantas vidas também partem. Não impede a palavra da transformação, a incontinência da expressão contida, nem o grito de protesto da inconformação retida. O poema não se curva ao que destrói porque enfrenta, luta e reconstrói.
O poema enfrenta a selvageria da maldade, a insensatez da desumanidade e a demência da obscuridade. Desafia o que desafiou a ordem dos sentidos, a estabilidade da normalidade, a ameaça da aspereza e o temor da carruagem induzida a transportar ovelhas para outra estação. O poema enfrenta a banalidade da maldade porque habita outro mundo que cintila.
O poema não se destrói nem é destruído pelo que destrói. Não persegue, sobrevive. Se renova a cada opressão que se desenha no arcabouço social. O poema resiste e em cada amanhecer persiste, porque vive na confrontação da ação que ofende a própria vida. Persiste por não permitir violação e destruição por quem insiste em destruir e violentar. Não se cala, não se conforma, não morre e nele sobrevive o que para sempre deve viver.
O poema não esquece e homenageia
a criança que partiu em todos nós, juntamente com outras tantas violentadas
pela alienação, pelo abandono, pela fome, pela miséria, pela marginalidade e
pela exclusão.