segunda-feira, janeiro 31

QUEM É QUE VAI PAGAR POR ISSO? A HISTÓRIA SE REPETE


No dia 13 de agosto de 1987, Belém foi traumatizada com o desabamento do Edifício Raimundo Farias, que matou 38 operários e uma criança.

Em 1990, este escriba e as colegas Arlene Abreu e Márcia Azevedo, fizemos nosso trabalho de conclusão do curso de jornalismo sobre a situação das vítimas do desabamento do edifício Raimundo Farias, três anos depois. A pesquisa inicial revelou a lerdeza das instituições, o esvaziamento da ação do Sindicato dos Trabalhadores na Construção Civil, o silêncio da grande imprensa. O que nos levou à idéia central do trabalho- a justiça é um conceito dentro de classe social.

No videodocumentário “Quem é que vai pagar por isso?”, reconstituímos o clima do desabamento do Raimundo Farias, mediante depoimentos de testemunhas da queda do edifício. Os relatos das vítimas são chocantes. Sobreviviam na mais absoluta miséria, com graves problemas físicos e psicológicos, muitos entregues ao alcoolismo. O pecúlio previdenciário rapidamente se acabara. As pensões previdenciárias eram insuficientes para o sustento das crianças, a maioria fora da escola por falta de vaga na rede pública. E, desde que as viúvas, com apoio do Sindicato, acionaram a construtora Marques e Farias, junto com outras empresas e entidades responsáveis pela construção e fiscalização da obra, a minguada cesta básica fornecida pela construtora durante 11 meses, fora suspensa. Todos os segmentos interessados foram convidados se manifestar no documentário. Foi gritante o silêncio da empresa.

A imprensa, que fez ampla cobertura da retirada dos escombros, nunca foi ao ponto crucial, o procedimento da justiça diante do fato. Mostramos, no vídeo, que seis meses após a instauração do inquérito policial, o delegado Paulo Tamer concluiu por homicídio culposo, indiciando os proprietários da empresa, Eduardo Marques e Haroldo Farias, o calculista Arquimino de Atahyde e o engenheiro da obra, Paulo Roberto Leão. Mas, em janeiro de 1988, o promotor público Manoel Castelo Branco excluiu da culpa o engenheiro responsável e denunciou à Justiça, os proprietários da construtora e o calculista por crime de desabamento. Com a mudança de enquadramento, a pena a ser aplicada, caiu de 25 a 30 anos de reclusão, para dois anos de prisão simples e o prazo de prescrição para cinco anos. Sublinhamos em nosso trabalho, que faltavam dois anos para o crime prescrever.

O tempo passou, o crime prescreveu.

No sábado passado, o Edifício Real Class, de 32 andares, desabou, soterrando carros, operários, ferindo vizinhos e transeuntes, repercutindo sobre a estrutura do prédio ao lado, que teve de ser evacuado.

As primeiras notícias quanto ao número de vítimas são desencontradas. Esse número não vem ao caso. Irregular é a presença de trabalhadores na obra, num sábado, duas horas da tarde. Fere a convenção coletiva da categoria. E a obra já fora embargada pelo órgão local do Ministério do Trabalho, a partir do 15º andar, porque o elevador de trabalho não oferecia segurança aos operários.

Para o engenheiro Raimundo Silva, responsável pelos cálculos da obra, falha geológica explicaria o acidente. Segundo outros engenheiros, a afirmação é questionável e induz à falha na etapa fundamental de qualquer obra, a sondagem do solo. É muito cedo para afirmações categóricas. As perícias são imprescindíveis.

Agora, na medida em que fique caracterizada a responsabilidade de quem quer que seja, é necessária a mobilização da cidadania, para que a Justiça aconteça. Usemos as redes sociais para pressionar as corporações interessadas em abafar o assunto, o Ministério Público e o aparelho judiciário.

A mobilização via redes que se formam espontaneamente em torno de uma necessidade coletiva são o motor das mudanças de interesse da sociedade. Vamos evitar a repetição do Raimundo Farias, em que punidos foram os operários. Com a própria da vida.

OCTAVIO PESSOA – jornalista e advogado.

sábado, janeiro 1

A coragem criativa é necessária a quem desenvolve qualquer profissão

A propósito do último post, em que transcrevi um texto do falecido Artur da Távola, sobre a importância da criatividade, especialmente nessas fases de mudança, como as festas de fim de ano, retorno neste primeiro dia do ano de 2011, compartilhando este texto sobre a coragem criativa:

Vivemos a morte de uma época e a nova era ainda não nasceu. Tudo a nossa volta é prova disso: a mudança radical nos costumes sexuais, na educação, na religião, na tecnologia e em quase todos os outros aspectos da vida moderna. E, por trás de tudo, a ameaça da bomba atômica, distante, mas sempre presente. É preciso coragem para viver nesse limbo.

Temos uma escolha: fugir em pânico ante a iminência do desmoronamento de nossas estruturas e acovardar-nos com as perdas dos portos conhecidos, ficando paralizados, inertes e apáticos; ou lançarmos mão de toda a coragem necessária para preservar nossos sentimentos, nossa consciência de responsabilidade, ante a mudança radical, participando conscientemente, mesmo em pequena escala, da formação da nova sociedade.

Acovardando-nos, abrimos mão da oportunidade de participarmos da formação do futuro, negamos a característica mais distintiva do ser humano - a possibilidade de influenciarmos a evolução por meio do conhecimento consciente. Dessa forma, capitulamos frente à força destrutiva e cega da História, desistimos de moldar uma sociedade futura mais justa e humano.

Somos chamados a realizar algo novo, a enfrentar e terra de ninguém, a penetrar na floresta onde não há trilhas feitas pelo homem e da qual nunca alguém voltou para nos servir de guia. É a isso que os existencialistas chamam de angústia do nada. Viver no futuro significa um passo para o desconhecido.

Isso exige coragem, uma coragem sem precedentes imediatos e compreendida por poucos. Essa coragem não é o oposto de desespero nem de teimosia Mas a coragem que se origina no interior de nosso eu. Sem ela nos sentimos vazios. O “vazio” interior corresponde à apatia exterior que, com o correr do tempo, se transforma em covardia.

A coragem não é um valor entre os valores do indivíduo, nem é uma virtude como o amor ou a fidelidade. É o alicerce que suporta e torna reais todas as virtudes e valores. Sem ela o amor empalidece e se transforma em dependência. Sem a coragem, a fidelidade é conformismo. Ela é necessária para que o homem possa ser e vir a ser.

E para que o eu seja, é necessário afirmá-lo e comprometer-se. Eis aí a diferença entre os seres humanos e o resto da natureza. A bolota se transforma em carvalho por crescimento automático, o filhote transforma-se em gato pelo instinto; nenhum compromisso consciente é necessário. Mas um homem ou uma mulher tornam-se humanos, conseguem valor e dignidade, pelas múltiplas decisões que tomam diariamente. Essas decisões exigem coragem.

A coragem física é importante se ao invés de se expressar em des¬mandos de violência ou para afirmar poder egocêntrico sobre outras pessoas, se dirige para o cultivo da sensibilidade, para a valorização do corpo como meio de despertar empatia nas outras pessoas. A coragem moral, que se origina na identificação da sensibilidade do indivíduo com o sofrimento do próximo, é necessária, como necessária é a coragem social, que é o oposto da apatia, é a capacidade de arriscar o próprio eu na esperança de se atingir uma intimidade significativa.

Finalmente, é mais do que necessária a coragem criativa, que é a descoberta de novas formas, novos símbolos, novos padrões, segundo os quais uma nova sociedade pode ser construída.

Toda profissão pode exigir e exige coragem criativa. Nos nossos dias, a tecnologia, a engenharia, a diplomacia, o comércio e, sem dúvida, o magistério, todas essas profissões e dezenas de outras passam por mudanças radicais e precisam de indivíduos corajosos que valorizem e dirijam essas mudanças. A coragem criativa é proporcional ao grau de mudança”.

(extraído do livro “A Coragem de Criar”. Rollo May. Editora Nova Fronteira. 5a. Edição.1983).