quinta-feira, janeiro 19

QUERO MORRER COMO UM PÁSSARO

No retorno de uma longa viagem de fim de ano, soube que o Murico, o mais excêntrico das figuras pitorescas descritas na primeira crônica deste livro, morreu durante a minha ausência. O projeto de edição deste livro já estava em curso, revisão de texto já feita, mas resolvi escrever mais esta crônica, uma homenagem a uma figura marcante, que deixou muita saudade. E um bônus para você, leitor.

A notícia da morte do Murico me deixou consternado. Eu e minha família aprendemos a prezar aquele singelo ser humano, que optou por viver na rua. Sim, há muito tomei conhecimento de que a vida que ele levava era uma opção. O Moysés, este era o seu nome, tinha uma família pobre, porém razoavelmente estruturada, que lhe proporcionou rudimentos de educação. Mas, na adolescência, ele teria se envolvido com drogas e todas as situações daí decorrentes. Ele amargou alguns anos de prisão, onde teria sido vítima de violência de toda ordem, inclusive da parte de policiais. Teve a felicidade de não sucumbir aos maus tratos e de sair daquele “inferno”, porém com seqüelas que marcaram o resto de sua vida. Egresso da prisão, a convivência em família foi inviável. Qualquer lugar fixo, ele teria dito à mãe, era uma cadeia, e que ele preferia viver e morrer como os pássaros. Voando por todos os lugares e morrendo onde e quando Deus quisesse.

Aí eu entendi porque o Murico, nos seus momentos de maior euforia, saia cantando pelas ruas do bairro, integralmente, a música “Pavão Misterioso” do Ednardo:
Pavão misterioso
Pássaro formoso
Tudo é mistério
Nesse teu voar
Ai se eu corresse assim
Tantos céus assim
Muita história
Eu tinha prá contar...
Pavão misterioso
Nessa cauda
Aberta em leque
Me guarda moleque
De eterno brincar
Me poupa do vexame
De morrer tão moço
Muita coisa ainda
Quero olhar...
Pavão misterioso
Pássaro formoso
Tudo é mistério
Nesse seu voar
Ai se eu corresse assim
Tantos céus assim
Muita história
Eu tinha prá contar...
Pavão misterioso
Pássaro formoso
No escuro dessa noite
Me ajuda, cantar
Derrama essas faíscas
Despeja esse trovão
Desmancha isso tudo, oh!
Que não é certo não...
Pavão misterioso
Pássaro formoso
Um conde raivoso
Não tarda a chegar
Não temas minha donzela
Nossa sorte nessa guerra
Eles são muitos
Mas não podem voar...

A inteligência e a sensibilidade do Murico eram indiscutíveis. Diversas vezes o vi, lendo os fragmentos de jornais que ele encontrava pela rua e quase sempre fazia comentários com juízo de valor sobre a notícia, ainda que defasada.

Refeito do impacto da morte do Moysés, busquei saber em que circunstâncias ela se deu. Fim de tarde de dezembro em Belém. Chovia torrencialmente, o Murico, cheio da “canicilina”, como quase sempre, pediu ao dono de uma baiúca uma “beira”, para se proteger do temporal. Recostou-se num canto, colocou-se numa posição fetal e com os cabelos e a barba longos, projetados sobre o corpo esquálido, entrou em sono profundo.

As horas se passaram e chamou atenção do baiuqueiro o fato do Murico não reagir aos respingos da chuva que caiam sobre o corpo dele. Logo ele que não era chegado a água. Foi inútil chamar pelo Murico.

Eu imagino a chegada do Murico lá no céu. Com aquele sorriso de criança, cantando a música de sua livre adaptação, quando queria ganhar um bom prato:
Mamãe, mamãe, mamãe eu quero.
Mamãe eu quero
Mamãe eu quero brocar
Traga o bandeco
Traga o bandeco
Traga o bandeco pro Murico não chorar.
Toma Muriquinho do meu coração
Toma esse ranguinho e não chores mais não.

O paraíso deve estar mais festivo, com a chegada daquele anjo que nas suas provações em sua passagem pela terra, optou por viver como os pássaros. Que andou por onde a vida o levou e morreu onde e como Deus quis.

Com essa crônica dedicada ao Murico, eu homenageio também, todos os homens e mulheres de rua. Aqueles que, quando muito, merecem registro apenas na página policial dos jornais da grande imprensa.

quinta-feira, janeiro 12

O MELHOR PRESENTE PARA BELÉM.

12 de Janeiro- aniversário de Belém do Pará. Pela segunda vez consecutiva, por motivo de férias, encontro-me fora dessa cidade. Se a distância me faz saudoso, o distanciamento me permite refletir quanto a qual seria melhor presente para Belém. Onde me encontro, Rio de Janeiro, fatos lamentáveis ocorridos no ano passado, nesta mesma época, se repetem, e me ajudam a refletir sobre Belém.

Ontem, uma equipe de jornalismo de uma emissora de TV, realizando um “o povo fala”, nas ruas cariocas, abordou-me com a questão da pauta do dia “Em sua opinião, quem é o maior responsável pelas tragédias das cidades em decorrência das chuvas? As autoridades ou as pessoas que insistem em morar nos lugares de risco?”. Conhecedor da premência do tempo em TV, procurei organizar os pensamentos e responder mais ou menos o seguinte: “Se considerarmos que muitas pessoas não tem onde morar, seu retorno para as áreas de risco não é uma opção de vida, mas a única alternativa. Como as causas, o excesso de chuvas, são previsíveis, a falta de ação preventiva e os desvios de recursos públicos, faz dos poderes públicos os responsáveis pelas conseqüências das tragédias”. Não sei se minha resposta foi para o ar. Provavelmente não.

O episódio me fez lembrar Belém. Para felicidade nossa, morros não existem na topografia de nossa cidade, afastando a possibilidade de deslizamentos, nas grandes chuvas. Mas existem as baixadas, as extensas áreas de Belém situadas a baixo do nível do mar que, nas grandes chuvas e especialmente quando simultâneas com as marés altas, levam muito sofrimento aos menos favorecidos que, também sem opção, moram nesses locais, em habitação precária que vão se espalhando caoticamente. Somam-se à questão natural das baixadas, a ausência de políticas públicas voltadas para a educação do povo, no sentido da forma mais adequada da destinação do lixo. Essa ausência faz com que o lixo concorra para acentuar a tragédia, impedindo o adequado escoamento das águas. Os recursos públicos que poderiam ser destinados a programas educacionais dessa natureza são empregados, por exemplo, em programas demagógicos nos veículos de comunicação, apregoando obras de validade questionável, a maioria das vezes mentirosas, com custos aumentados artificialmente.

As grandes chuvas, que se iniciam agora, no começo do ano, e se acentuam ao longo de todo o primeiro semestre, evidenciam outro aspecto que torna a vida em Belém, uma tortura: o nosso trânsito. O que decorre da ausência de adequação da infraestrutura de tráfego, ao aumento da frota de veículos que percorrem a nossa cidade. A estrutura viária de Belém ainda é, de maneira geral, a mesma deixada por Antonio Lemos, no início do século passado. A frota de veículos aumentou exponencialmente, nesse meio tempo. Os estudos para o trânsito de Belém e sua região metropolitana, realizados pelos técnicos japoneses da JICA- Japan International Cooperation Agency (Agência Internacional de Cooperação Japonesa), no início dos anos 80 do século passado, foram postergados por sucessivos governos. A pequena parte realizada no último governo, as obras viárias entre o bairro do Coqueiro e avenida Júlio César, são uma pequena parte, que deveria ter sido feito há mais tempo. Há necessidade urgente de prosseguimento das obras estruturais do trânsito da região metropolitana de Belém.
O melhor presente para Belém, antes que ela seja quatrocentona (em 12 de janeiro de 2016), penso eu, seria a criação dos pressupostos para a solução, dentre outros, desses problemas estruturais, para fazer de nossa cidade, uma urbe de vida saudável. Isso passa com certeza, por amplos debates, que levem em conta e tornem público a situação econômico-financeira do município de Belém, que não é nada fácil (tema para outro post) e a eleição de homens públicos que honrem a expressão “coisa pública” e queiram efetivamente o melhor para a antiga Metrópole da Amazônia.