segunda-feira, agosto 20

MARÍLIA EMMI AGORA EM PORTUGUÊS E INGLÊS



        A socióloga, doutora, professora e pesquisadora Marília Emmi mais uma vez é reconhecida na seara da ficção que abraçou após sua aposentadoria da UFPA.

Ainda na Academia, Marília se tornou Mestre com sua tese que deu origem ao livro hoje esgotado sobre a “Oligarquia do Tocantins e o domínio dos castanhais” e doutorou-se com a tese que originou a obra “Italianos na Amazônia: pioneirismo econômico e identidade”. Ela escreveu depois, um livro em que ampliou o espectro da imigração na Amazônia, “Um Século de Imigrações Internacionais na Amazônia Brasileira”.



As origens italianas tanto de Marília quanto do marido, Giovanni Emmi, falaram mais alto e hoje ela se dedica à ficção em textos com a temática da imigração italiana na Amazônia. Seu primeiro conto, “Letizia”, foi premiado no 1º Concurso Literário Brasil-Itália publicado na Antologia Vozes Ítalo-brasileiras I / Voci Italobrasiliane I (2016).

Selecionado, um novo conto de Marília faz parte agora da coletânea bilíngue Faz de Conto III / Make Believe III, organizado por Jannini Rosa e apresentado por Betty Silberstein, escritora, revisora e tradutora e é editada pela Helvetia, de Cabo Frio/RJ.

São 35 contos de diversos autores editados num livro que não tem capa e contracapa. Em qualquer sentido que o leitor apanhe o livro, a leitura é possível. De um lado em Português e de outro em Inglês. Essa concepção gráfica lembra a obra do consagrado autor paraense Daniel da Rocha Leite em parceria com o também paraense Paulo Vieira, “Peso-Ver-O”, que não é bilíngue, mas aborda sob dois enfoques a temática da feira do Ver-O-Peso de Belém.

Compartilho com o prezado leitor, o texto em Português do conto de Marília Os três amigos / The Three Friends, sugerindo a leitura da coletânea completa que pode ser solicitada pelo site www.helvetia-edicoes.com.br

Os três amigos

Como se não bastasse o som da vitrola no último volume, o coro das vozes dos três amigos, ao entoar uma velha canção do folclore italiano, rasgava o silêncio da noite naquela cidadezinha do interior da Amazônia. Quando não era a vitrola, o som vinha do acordeon de Vittorio sempre acompanhado pelos amigos que aumentavam a voz no refrão:
Merica, Merica, Merica / Cosa saràlo ‘sta Merica? / Merica, Merica, Merica / Un bel mazzolino di fior
A cena se repetia todas as vezes que Gennaro, Vittorio e Giuseppe se encontravam.
_ A italianada já começou a cantoria, vou me recolher! Reclamava dona Maricota, vizinha de Giuseppe.
_Vamos para casa da vovó! Os filhos de Giuseppe já sabiam que era hora de sair para dar aos amigos a liberdade de mergulharem numa Itália distante, que só existia em suas recordações. Eram tantas evocações: pessoas, lugares, acontecimentos que só no universo deles fazia sentido.
O calabrês Gennaro era da província de Cosenza. Após breve passagem pelo Rio de Janeiro, morou por algum tempo em Belém, de onde seguiu ao encontro de parentes que haviam se radicado em Óbidos, próspera cidade do baixo Amazonas. Solteiro, deixou Maria, sua noiva na Itália, mas em Óbidos casou-se com Manuela, filha de um comerciante espanhol, seu patrão. Gennaro, que era ferreiro de profissão, depois de muita luta conseguiu montar um pequeno comércio de gêneros alimentícios, ao lado de sua oficina. O lucano Vittorio, veio da província de Potenza e fixou residência em Belém. Dois anos após a chegada, mandou buscar a mulher e os filhos. Foi jornaleiro e engraxate mas conseguiu se firmar´ como sapateiro. Trabalhou durante muitos anos na sapataria Bella Itália, no centro de Belém. Prosperou, conseguindo tornar-se sócio desse estabelecimento. O siciliano Giuseppe desde muito jovem trabalhou na agricultura. Convocado, esteve nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Desse período, além da memória dos combates, da fome e das agruras da guerra, alucinações fantasmagóricas povoavam seu imaginário. Enfrentou muitas dificuldades para se fixar em Belém. Aceitava o trabalho que aparecia. Foi leiteiro, jornaleiro, engraxate e sapateiro. Resolveu tentar a sorte na cidade de João Coelho, situada às margens da estrada de ferro de Bragança. Nessa cidade fixou residência e conseguiu montar um pequeno restaurante onde servia a verdadeira massa italiana que tinha prazer em preparar.
O compromisso era imprescindível: todo final de mês Vittorio e Genaro cumpriam o mesmo ritual, tomar o trem em Belém para o encontro na casa de Giuseppe. Haveria algo no passado que unia esses três imigrantes com diferentes trajetórias e histórias de vida? O fato de terem vindo de regiões empobrecidas do sul da Itália e em circunstâncias adversas, além do sonho de juntar recursos para o retorno à terra natal talvez explicasse tamanha cumplicidade, ou haveria algo mais?
As crianças gritavam alvoroçadas: Lá vem o trem! Lá vem o trem! O barulho do trem trazia um pouco de vida àquelas paragens. Os vendedores ficavam à beira da estrada com tabuleiros na cabeça anunciando seus produtos:
- Olha a broa, olha o pastel! Vai uma pupunha cozida?
Ofereciam também frutas da região. Um cheiro gostoso se espalhava no ar: cupuaçu, bacuri, araçá, jambo. Tudo era convertido em alguns trocados.
O encontro dos amigos era um acontecimento singular! Giuseppe vestia sua melhor roupa, sapatos engraxados, cujo brilho a grossa camada de poeira escondia. O inseparável boné xadrez sobre seus ralos cabelos.
Não importava se o tempo estava chuvoso ou ensolarado. A cena sempre se repetia. Vittorio e Gennaro desciam do trem bastante cansados, cabelos em desalinho, roupas acinzentadas pela fumaça e por vezes queimadas pelas brasas que se desprendiam do trem, mas nem se importavam com os percalços da viagem. Sempre com um embrulho debaixo do braço, Gennaro trazia guloseimas para os filhos do amigo. As crianças ficavam à espreita e logo que recebiam os doces sumiam pela vizinhança. Vittorio trazia vinho, jornais e revistas que ganhava de patrícios assíduos em sua sapataria.
O encontro começava tão logo a locomotiva sumisse na estrada e entrava pela noite. Geralmente durava dois ou três dias. Só terminava com a partida do trem que levava de volta os visitantes.
Nem parece que já haviam se passado mais de trinta anos quando a bordo do navio Europa os três desembarcaram no Rio de Janeiro. A decisão de buscar o Brasil como destino do percurso migratório estava nos planos do calabrês e do lucano, ambos tinham parentes e promessas de trabalho. Diferente era a situação do siciliano. Insatisfeito com seu ofício de ajudante de cozinha no navio, sempre que aportava, tinha desejo de ficar. Considerava o sonho impossível, não fosse a motivação e a ousadia dos novos amigos que fizera, sobretudo por conseguir burlar a vigilância e partilhar alimentos que minorassem a fome e o desconforto a que eram submetidos como passageiros de terceira classe. Gennaro e Vittorio juraram que iriam conseguir realizar o sonho do novo amigo. Sim, ele também tinha o direito de “fazer a América”!
O plano de fuga foi posto em prática na ocasião do desembarque no Rio. Giuseppe ofereceu ajuda para carregar as malas e assim que se viu em terra firme desapareceu na multidão. O que aconteceu depois? As histórias só foram conhecidas quando na década de 1950, por obra do acaso, houve o reencontro dos três numa estação da ferrovia Belém-Bragança.
_ Senhor, que horas parte o próximo trem para Bragança? Moro em Óbidos, mas preciso entregar uma encomenda...
A frase é interrompida por gritos de direções opostas: 
_ Gennaro!Gennaro!
_ Vittorio! Giuseppe!
Quanto tempo choraram abraçados! Queriam saber dos diversos caminhos percorridos, compartilhar experiências, conhecer a história de cada um. Estavam felizes no Brasil, mas a nostalgia da terra-mãe seria o elo da corrente que iria acompanhá-los nos encontros mensais, pelo resto de suas vidas.
Marilia Ferreira Emmi
Belém-Pará 14/01/18




segunda-feira, maio 28

A INCONTINÊNCIA DIGITAL E A FILOSOFIA DE RIOBALDO



Octavio Pessoa

          Tal como a incontinência urinária, a incontinência intestinal e outras afins, espalha-se agora outra incontinência tão perniciosa quanto as suas semelhantes,  a Incontinência Digital.
          O portador da Incontinência Digital não resiste à coceira incontrolável na ponta dos dedos e, junto com as numerosas mensagens de autoajuda, replica as notas bombásticas que invadem as mídias eletrônicas, especialmente quando o conteúdo da nota “bate” com o ponto de vista que ele sustenta, a maioria das vezes absorvido por osmose de falsos formadores de opinião.
O Incontinente Digital é um assíduo frequentador dos grupos do wathsapp. Ele não percebe que a maior guerra dos dias atuais é a provocada e estimulada pelos fabricantes de opiniões a serviço deste ou daquele interesse, que encontram nos Incontinentes Digitais os seus maiores aliados no processo de viralização das fake News. Parece que o Incontinente Digital sente verdadeiro orgasmo ao ingenuamente prestar valorosa colaboração no espalhamento das falsas notícias. O relacionamento do produtor de falsas informações e o Incontinente Digital é como o da tampa e do penico.
A Incontinência Digital tem cura? Há controvérsias. Há sim paliativos como, por exemplo, contar até mil antes de dar vazão à incontrolável urticária dos dedos diante das notícias e informações extravagantes, especialmente quando elas contêm opiniões com a qual o portador dessa Incontinência se identifique.
Os Incontinentes Digitais parecem sofrer de outros males como aversão às leituras substanciosas e à reflexão consciente sobre o que leem e veem.
Riobaldo, personagem do clássico “Grande Sertão: Veredas” de João Guimarães Rosa, escrito em meados de século passado, parece referir-se aos Incontinentes Digitais com essa tirada filosófica: “O senhor deve de ficar prevenido: esse povo diverte por demais com a baboseira, do traque de um jumento formam tufão de ventania. Por gosto de rebuliço. Querem porque querem inventar maravilhas glorionhas, depois eles mesmo acabam crendo e temendo. Parece que todo mundo carece disso”.
Antes de dar vazão à sua Incontinência Digital lembre-se das palavras do personagem de Guimarães Rosa. E não faça “Do traque dum jumento um tufão de ventania”.