terça-feira, outubro 4

ESTAVA ESCRITO...




Nada acontece por acaso. Para Carl Gustav Yung fatos comumente atribuídos ao acaso se explicam pela lei da sincronicidade universal e pelo inconsciente coletivo. No curso das pesquisas sobre os aviões Catalina, para a futura edição de obras sobre a saga desses aviões, vivi uma situação que parece se explicar por motivos imponderáveis.

Fizera eu uma postagem na página “Amigos de Parintins”, do Facebook, pedindo a colaboração dos meus conterrâneos e amigos no sentido de me enviarem fotos, textos, informações que pudessem ter, inclusive sobre acidentes com aqueles aviões que surgiram como equipamentos de guerra, tiveram atuação expressiva durante a II Guerra Mundial, tanto na Europa quanto na costa brasileira e ao fim do grande conflito realizaram no Brasil missões militares em tempos de paz de grande importância para a integração da Amazônia, sendo assim “Asas de Guerra e de Paz”. A utilização dos Catalinas pela aviação civil no transporte de passageiros e carga, especialmente na linha aérea orientada pela calha do rio Amazonas, evidenciaram o importante papel social e econômico desses hidroaviões anfíbios para os ribeirinhos amazônicos. Eles eram assim as  “Asas de um rio”.

Diversos conterrâneos e amigos acorreram ao meu pedido, inclusive May Freitas, para mim, então, ilustre desconhecido. May foi além do que eu esperava. Deu-me elementos, enviou fotos, polemizou comigo, enfim, colaborou decisivamente para o enriquecimento do trabalho.

A conversa virtual entre nós se acentuou e derivou para outros temas. Em dado momento May sugeriu que nos conhecíamos e fez perguntas sobre pessoas da minha família, o que no início me deixou “encucado”. Quando eu soube seu nome completo, Maycílvio (assim mesmo com “y” e “c”), minhas memórias mais recônditas foram sendo resgatadas. Era eu um curuminzinho sendo alfabetizado na escola particular das irmãs Freitas, na Travessa Rio Branco, da Parintins da minha infância. Recordei minha professora, Dona Nilia Freitas, na cabeceira daquela longa mesa e nós alunos, no entorno com nossos cadernos, lápis, borracha e cartilhas, atentos às explicações ou sendo sabatinados na tabuada em que nós aprendíamos as quatro operações fundamentais.

Um turbilhão de imagens passou pela minha mente. E dentro daquele cenário, a figura daquele jovem  sempre prestativo e atencioso, ajudando as tias que o criavam, nas mais diversas tarefas da casa e da escola. Era o Maycílvio. Maycílvio Freitas que na vida adulta adotou o apelido pelo qual sempre foi tratado, Maí, grafado May. Interessante. Logo no início de nossas conversas virtuais eu lia o nome dele com a pronúncia em inglês (Mei) e pensava ser uma mulher. Sim. Meu amigo virtual era aquele jovem que circulava pela casa/escola sempre de forma simpática com todos os alunos.

Nossa origem comum nos levou à lembrança de “paradas” hilárias, outras nem tanto e a outros assuntos, especialmente da Parintins do passado e lamentamos a descaracterização histórica que nossa cidade vem sofrendo. 

       Abordamos a despersonalização do “Caracol”. O caracol era  uma estrutura junto à rampa que ligava o antigo trapiche do porto à área urbana de Parintins, com estilo de época do final do século dezenove. Era revestido por pedras pretas que abrigavam em seu interior figuras em formato de caracóis feitos por pedras brancas incrustadas nas pedras pretas. Esse verdadeiro monumento foi destruído e substituído por uma estrutura fria e sem vida.

Questionamos também o desaparecimento da balaustrada, outra estrutura de época que marcava nossa cidade. Balaustrada porque formada por balaústres, colunetas com base e capitel espaçadas entre si, sustentando uma espécie de parapeito. Hoje não tenho dúvida de que a Balaustrada, por seu significado na simbologia maçônica, era um marco da passagem de maçons à frente da municipalidade de Parintins, que deixaram obras de bom gosto para a posteridade. Intenção essa prejudicada. As últimas gerações e as futuras só terão notícia do que um dia tivemos aquele monumento histórico, localizado num ponto estratégico da cidade, à margem do rio Amazonas. Dali se contemplava o por do sol mais bonito do mundo. Na Balaustrada e no Caracol muitos namoros começaram, floresceram e certamente muitos ali terminaram. Eram lugares de “muitas emoções”, como diz o Roberto.

Comentamos também as alterações na Praça do Cristo Redentor totalmente descaracterizada, o fim do Cine Brasil e o abandono do Palácio Cordovil, sede da Prefeitura Municipal por tantos anos, que homenageia o fundador da cidade, José Pedro da Silva Cordovil. Esse Palácio deveria ser transformado num Museu Municipal para ali se preservar os ícones e valores da ilha  Tupinambarana, onde Parintins é situada,  e de sítios das redondezas.

Nossos diálogos virtuais foram além do saudosismo conservador e vulgar que se opõe ao progresso. Este é inevitável. O equívoco reside quando em nome do progresso se apagam marcos culturais de uma sociedade. Muitas vezes simplesmente destruídos e substituídos por obras de estética questionável, quase sempre construções de valor astronômico e de duração efêmera, o que coloca em xeque a idoneidade dos “realizadores”, que "engordam" seus caixas de campanha com os recursos  públicos destinados a essas obras. 

Nossas conversas na verdade, foram cheias de juventude pois ser jovem é “ter abertura para o novo na mesma medida do respeito pelo que é imutável”, o que é cultural, como diz  Artur da Távola que na crônica “Ser Jovem”. O que deveria ser imutável por registrar épocas da História de um povo é solenemente desprezado pelos ditos homens públicos.

O mesmo se dá com os nomes dos logradouros públicos que são trocados com a complacência dos ditos representantes do povo nas câmaras municipais para homenagear “figuras” do momento e sufocar o nome de personalidades e datas importantes para uma população. Tema esse muito bem explicado pelo cientista político José Murilo de Carvalho, no livro “A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil”.

Evidenciadas afinidades de pensamento entre o May Freitas e eu foi inevitável o desejo recíproco de uma conversa "ao vivo e a cores" logo que possível. Coloquei-o a par da minha ideia de lançar, ainda no ano passado, o meu livro de crônicas “Causos Amazônicos”, 2ª. Edição em Manaus e em Parintins. Ele não só aquiesceu ao projeto como teve papel crucial para o lançamento do livro em Manaus, por sua amizade com o dono da Livraria Valer, onde o livro foi lançado no dia 5 de junho de 2015. Agora, por uma dessas ironias da vida, o May não pode comparecer ao lançamento em Manaus, o que era propósito dele e expectativa minha. Ele sofreu um infarto do miocárdio na madrugada daquele dia.




Recuperado do susto, graças a Deus, May entrou em contato comigo e garantiu-me que estaria em Parintins em julho seguinte, para prestigiar-me no lançamento em nossa terra natal. E cumpriu. Ele foi o primeiro convidado a chegar à ao local do evento, o que permitiu uma longa e prazerosa conversa.

Foi um “questionamento de afins”, nas palavras do mestre  Artur da Távola na crônica “Afinidade o sentimento que resiste ao tempo e ao depois”. O cronista afirma e eu concordo plenamente com a ideia de que, quando há afinidade não importa o tempo que passou. Quando os afins se encontram é como se o tempo não houvesse passado. O vínculo continua como se interrupção não tivesse ocorrido.

May e eu remexemos o baú de saudades. Fatos e pessoas de Parintins, algumas ainda vivas e outras já noutro plano de vida foram lembradas.  Ficamos tão à vontade que May me falou sobre familiares dele, muitos dos quais eu não cheguei a conhecer.

Órfão dos pais Antonio Prazeres de Freitas, conhecido como Antonio Presépio, e Iracema de Barros Freitas, May foi criado pelas tias conhecidas como as irmãs Freitas, todas ligadas ao magistério nas singelas escolas particulares da época em nossa cidade natal. Anna Gertrudes de Freitas, a famosa professora Annita Freitas, conhecida por sua rispidez mas que foi responsável pela educação de muitos cidadãos e cidadãs que dignificaram e dignificam nossa cidade. Anna Rita de Freitas (Annicota) gêmea de Annita e que cedo faleceu. Honorina Nília de Freitas, a Dona Nilia, minha professora. Luce Orion de Freitas, que além de tudo cantava no coral da então igreja matriz de Parintins, dedicada a Nossa Senhora do Carmo, hoje sede da paróquia do Sagrado coração de Jesus, em razão da construção da Catedral de Parintins, onde a Mãe do Carmo passou a ser homenageada.

May se emociona quando fala da tia Annita Freitas, em quem ele e o irmão mais velho, Yano, viam a figura da mãe que cedo partiu desta vida. A Professora Anita Freitas foi nome de Escola Pública em Parintins e depois “cassada”, tendo a Escola outro nome, se é que ainda existe. Ele lembra também com saudade do seu tio José Maria Alberto de Freitas, oficial de Marinha Mercante que morava no Rio de Janeiro. O tio Zé Maria era casado com Dora Goes, irmã do Sr. Raul que virou personagem de uma das crônicas contidas em meu livro Causos Amazônicos. Zé maria e Dora tiveram uma filha chamada Moema e criaram a irmã de May de nome Yara, que vive hoje no Rio de Janeiro.

Nossos reencontro e aprofundamento da amizade foram tão significativos que, no almoço do Círio do ano passado May esteve presente em minha casa. Evento que completará um ano no próximo domingo e certamente será lembrado.
  
À direita, May Freitas no almoço do Círio de Nazaré de 2015, em minha casa


É isso aí. Afinal, felizes são as pessoas que sabem construir vínculos. Melhor ainda é se saber "regar” amizades. O efeito disso é imponderável e vale mais do que qualquer riqueza material.


(editado em função de postagem no Facebook de 31 de outubro de 2015 sob o título MEU REENCONTRO COM MAY FREITAS). 

4 comentários:

  1. Se hoje a matemática (bicho papão ) para muitos, para mim é de seda devo aos ensinamentos da profa. Anita Freitas.

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  2. Se hoje a matemática (bicho papão ) para muitos, para mim é de seda devo aos ensinamentos da profa. Anita Freitas.

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  3. Bela contemplação de pessoas e passado de nossa planetária Parintins-AM, caro Otávio Pessoa. Também tive a honra de ter sido aluno das professoras-irmãs, Anita & Lilian-FREITAS. Repaginar a história de Parintins é sempre Reviver as coisas lindas de nossa terra e, evidente, lamentar o que fizeram com nossas praças, monumentos e construções de estilo, o que deveria estar preservado para as gerações atuais e futuras. Saudações parintintin!!! DD

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  4. Parabéns pelo reencontro e pelas memórias...
    Muito interessante, fraterno abraço...

    Almeida Costa

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